Após filha de 3 anos ser vítima de racismo, mulher cria coletivo de mães negras em Curitiba

Ver a filha de apenas três anos ser vítima de racismo na escola, onde é a única criança negra, fez a jornalista e modelo Letícia Costa reviver diversas situações onde também foi vítima dessa violência. 

A menina ouviu de uma colega de classe que o cabelo dela era "feio", que não "servia para fazer penteado" e riu da criança. “É muito triste, muito revoltante, eu perdi o sono quando isso aconteceu com a minha filha. [...] A gente percebe como o racismo é enraizado e como ele é perverso", destacou. A menina não deixava ninguém encostar no cabelo dela o que levou os pais à escola para entender o que havia ocorrido. Na instituição, o episódio foi confirmado.

Movida a transformar a situação negativa em algo que pudesse fazer a filha se ver e se orgulhar de si, de seus traços e da sua história, ela criou um grupo no WhatsApp com recorte para mulheres mães pretas.

Coletivo Mães Pretas, espaço de troca e acolhimento

O grupo foi crescendo e se transformou no Coletivo Mães Pretas, espaço de troca e acolhimento entre adultos e crianças, com o objetivo de fortalecer a ancestralidade, história e cultura negra.

Nas crianças, em especial, o coletivo foca em reforçar a importância da própria identidade. “A questão da identidade é muito importante nessa fase que ela está. [...] O grupo é uma estratégia de aquilombamento, porque ali quando as crianças estão juntas, elas se vem uma na outra e estão livres de qualquer preconceito sobre a pele e cabelo delas, é sobre criar um espaço seguro nós", destacou.

Uma das dinâmicas promovidas pelo coletivo recentemente levou para uma roda de conversa a mestre em educação e pedagoga Fabiane Moreira. Ela, que também é mulher negra e mãe, afirmou que a questão da negritude na infância precisa ser discutida e acompanhada.

Isso porque o racismo ainda é recorrente e pode deixar marcas significativas que podem se estender por toda vida. “Algumas questões relacionadas à negritude e à infância são importantes de observar. Pesquisas que mostram casos de hiper sexualização de meninas, de crianças negras, que é muito grande, a negligência. [...]"

Fabiane Moreira pontua que é importante aprender a lidar com esse racismo na infância, através da valorização estética quanto à ancestralidade e ao autocuidado.

Dia da Consciência Negra não é feriado na capital mais negra do Sul do país

Letícia e a filha, assim como Fabiane e o filho, vivem em Curitiba, a capital do Sul do país que mais concentra pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas, cerca de 30% da população, de acordo com Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Apesar do Dia da Consciência Negra nesta segunda-feira (20), tanto a Prefeitura de Curitiba, quanto o Governo do Estado do Paraná não decretaram feriado. O mesmo ocorre na esfera federal.

Atualmente, há um projeto de lei em tramitação que debate tornar o Dia da Consciência Negra um feriado nacional. A proposta foi aprovada pelo Senado e aguarda votação na Câmara dos Deputados.

Coletivo de mães pretas se reúne em Curitiba como forma de fortalecimento mútuo — Foto: Arquivo pessoal
Coletivo de mães pretas se reúne em Curitiba como forma de fortalecimento mútuo — Foto: Arquivo pessoal

Para a doutora em Antropologia e professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) Ângela Maria de Souza, o fato de a data não ser feriado reflete o quando é necessário avançar nas discussões ligadas às questões étnico-raciais no Brasil. "A questão de ser ou não feriado está muito mais relacionada a não dar a devida importância que a data tem. Essa data foi conquistada. [...] Termos feriado no dia 20 marcaria politicamente esse espaço de luta e espaço de luta conquistado pela população brasileira", destacou.

Para Fabiane, que vive sob a ótica da capital paranaense e que atua na área da educação, o não reconhecimento da data como feriado fortalece o que chamou de "apagamento histórico da população negra". "Isso só demonstra como a cidade tem um projeto de apagamento histórico da população negra. Não foram só um ou dois caso, são vários casos de racismo na cidade sempre. Não tem um projeto de valorização da cultura na cidade, como tem para a população ucraniana, polonesa, italiana. Pensando em uma capital que tem 30% de pessoas negras e não ter isso, diz muito sobre a cidade”, desabafou a pedagoga.

Dia da Consciência Negra

Antropóloga Angêla Maria de Souza defende que Quilombo Palmares deveria ser considerado o primeiro estado, de fato, brasileiro. — Foto: Reprodução g1
Antropóloga Angêla Maria de Souza defende que Quilombo Palmares deveria ser considerado o primeiro estado, de fato, brasileiro. — Foto: Reprodução g1

O Dia da Consciência Negra faz referência a data em que Zumbi dos Palmares, um dos maiores símbolos da resistência e luta de povos africanos trazidos ao Brasil no período colonial como povos escravizados, foi brutalmente assassinado.

O crime ocorreu após o esconderijo dele ser denunciado.

Para a antropóloga da Unila, o Quilombo Palmares, que teve duração de mais de 100 anos e acolhia pessoas escravizadas que fugiam de fazendas, deveria ser considerado o primeiro estado, de fato, brasileiro.

"Ele tinha poder militar, ele tinha poder político, ele tinha toda uma lógica de construção do Estado, que reivindicava e que lutava contra a colônia. Então, é o primeiro Estado de fato que vai ser a alternativa a todo o processo colonial e escravocrata”, destacou a pesquisadora.

"É um mês extremamente importante. Mais de cinquenta por cento da população do Brasil é preta e ainda é a população que mais morre, que mais é assassinada. [...] É uma população que não tem mais a chibatada, mas ainda dói”, afirmou a jornalista Letícia.

Democracia sem cidadania?

Ângela considera ainda que a importância de 20 de novembro está em justamente valorizar a luta das pessoas negras até os dias atuais por reconhecimento cidadão.

A antropóloga destacou que diversos estudiosos do tema no Brasil e em outras partes do mundo são unânimes ao afirmar que a democracia ainda não está de fato concretizada no país, uma vez que parte da população ainda não tem seus direitos plenos garantidos, a exemplo do racismo que ainda impera.

"Não temos a cidadania para todas as pessoas e quando (os estudioso) falam isso estão se referindo principalmente a população negra. Se nós temos uma cidadania, nós não temos de fato uma democracia. Então, no Brasil ainda precisa se pensar dentro de toda uma estrutura racial que gera desigualdades para exatamente ver e mudar.

“A partir dessa mudança e da possibilidade de nos vermos enquanto cidadãs e cidadãos, plenamente, a gente passa a ter uma sociedade democrática, porém, exatamente pelo racismo ainda não temos", destaca.

A educação como ferramenta determinante na luta contra o racismo

Políticas públicas de ações afirmativas promoveram uma verdadeira evolução no acesso à educação, em especial de pessoas pretas e pobres, mas o processo para que todos tenham de fato o mesmo acesso às oportunidades, é um caminho árduo, segundo a antropóloga Ângela.

Ela acredita que a transformação através da identidade, do trabalho e da visão mais ampla de mundo e de experiências negras, indígenas e quilombolas enriquece o conhecimento gerado nas instituições de ensino e perpassa para outras camadas sociais.

"É extremamente importante que esse lugar seja tencionando, assim como todos os lugares na sociedade, para que a gente tenha pessoas negras, indígenas, toda a diversidade de gênero, presente dentro dos espaços, seja da educação ou de qualquer outro, só assim a gente vai ter uma educação cidadã”, defendeu a pesquisadora.

Uma luta de todos

A data que simboliza a luta das pessoas pretas no Brasil precisa ser abraçada por toda a sociedade para que as estruturas sociais seja quebradas para dar lugar ao respeito e à diversidade, tão importantes para a construção de um país de fato livre e democrático.

“A luta antirracista não é uma luta única e exclusiva das populações negras, ela é uma luta da sociedade. Se a gente enquanto sociedade unificada não conseguir alinhar esses discursos e trazer a população branca também com essa conscientização de que precisa vencer o racismo, todos vamos sofrer com isso”, destacou a pedagoga Fabiane Moreira que atua no coletivo.

“Geralmente recai muito sobre nós, pessoas negras, a luta contra o racismo, mas a luta contra o racismo é de toda a sociedade, de todas as pessoas, independente do pertencimento étnico racial”, argumentou a socióloga Ângela.

Para Letícia, a mãe que criou um coletivo pensando na filha que foi vítima de racismo, a luta ganhou mais força e tenderá a ganhar cada vez mais através do reconhecimento de pessoas não negras da existência do racismo no país e que as mesmas se juntem à causa para combatê-lo.

“A gente teve alguns avanços, mas ainda a gente ainda tá longe do ideal para que a gente consiga acordar e respirar e viver com tranquilidade. [...] A gente tá aqui como prova, vivendo na pele todo dia, situações de preconceito, situações de racismo e violências, desde que a gente nasce. [...] Se somos mesmo todos humanos, vamos lutar pela luta de todos os humanos", declarou a jornalista Letícia.

*Esta reportagem teve a colaboração de Maria Pohler, estagiária do g1.